Crítica: Hafis & Mara

Foi com o documentário Hafis & Mara que teve início ontem, 09 de maio, o 7º Panorama de Cinema Suíço Contemporâneo e contou com a presença do diretor Mano Khalil durante sua exibição no Cine Sesc.

O documentário foca na história de um casal, o artista suíço-libanês Hafis e Mara, apresentada como sua esposa. Logo no início do filme somos apresentados ao casal, que assiste em um antigo projetor de rolo algumas viagens de Hafis por diversos países, alguns dos quais eles nem conseguem relembrar qual era. O casal parece feliz ao assistir um sorridente e alegre Hafis.

Com essa imagem inicial de tranquilidade, o diretor vai apresentando novas camadas de Hafis. O simpático velhinho que tenta montar uma escultura de metal em um riacho da pacata cidade de Freiburg (Suiça) é mostrado em seu estúdio, com roupas de trabalho fazendo pinturas em tecidos espalhados pelo chão. Com longos pincéis e brochas ele espirra rastros de tinta sem encostar no pano, compondo imagens geométricas diversas em vários tons, ele parece feliz em sua atividade, mas ao ser perguntado sobre sua arte ele se demonstra triste e ressentido. Conta que recebe a aposentadoria mínima por nunca ter propriamente contribuído com a previdência, e que sua esposa banca suas artes, afirma estar velho, cansado e que não sabe o que fazer nessa idade e situação. Assume que gostaria de ter sido famoso e reconhecido pela sua arte — que mais tarde, com seus catálogos, vai tentar emplacar em museus de artes — apesar de nunca ter de fato perseguido a fama, o que ele mesmo chama de paradoxo.

Em sua falta de reconhecimento Hafis pesa a relação sobre Mara, que quando apresentada, afirma que não pode falar a opinião sincera sobre as obras de Hafis, tem que afirmar que estão boas — pelo menos de início — para não magoar Hafis. O reconhecimento que não recebeu em vida, parece ser o mesmo que Mara não recebe de seu marido. A imagem de esposa que herdou uma bela e confortável casa e alegremente sustenta as incursões artísticas do marido aos poucos se esvaem em seus — pela primeira de muitas situações — olhos marejados que parecem se recusar a chorar. Mara conta que gostava da vida agitada de outrora, que ama Paris e gostaria de poder viver lá onde a cidade respirava uma vida própria.

Agora conhecendo mais da essência de cada um vemos Hafis em seu estúdio divagando sobre a vida e seu papel como pai, junto de seu filho, viajando — seja para descobrir novas fronteiras do entendimento da morte em Gana ou para se aprofundar em suas origens no Líbano — e produzindo sua arte, enquanto Mara — que agora de pé descobrimos que possui uma grande corcunda e necessita do apoio de um andador — tirando pó das estantes com pilhas diversas de desenhos de Hafis.

Intercalando imagens de Hafis admirando belos corpos de jovens ganeses na praia, com pinturas fálicas, Mara — mais uma vez recusando o choro — diz que já sofreu muito com os encontros extraconjugais homossexuais que Hafis teve. Mesmo com toda consternação, ela não tece críticas, e se diz aliviada por ele não mais ter casos. Hafis em sua empáfia afirma que não conversa disso com Mara, pois ela nunca quis conversar sobre isso. Mara tenta dizer que não era verdade, mas a interrompe e assume a fala dando ele mesmo as explicações por ela. Relembra do suicídio da irmã lésbica de Mara, e que por isso sua esposa o vê como uma irmã perdida. Mara continua com todo seu corpo negando, mas Hafis não dá espaço para que ela possa se expressar.

No final das contas em sua singularidade Hafis e Mara expressam a universalidadedas relações conjugais entre homens e mulheres. Uma mulher que é apresentada como esposa, que não sabemos o que faz, ou o que fez, que foi silenciada e colocada em seu lugar e que precisa — pelas condições objetivas da sua vida — ser forte por ela e por seu marido, que desfruta as benesses da vida — mesmo que deprimido e também sofrido por sua sexualidade difusa — e tem seus espaços preservados. Um casal que na tristeza de cada um constrói uma relação tenra e pacífica.

A tristeza de ambos machuca, Hafis parece pela primeira vez sentir a dor de Mara e toma uma decisão: Reúne parte de seu acervo e o incendeia. O ritual o alegra, ele diz que nunca vai ser famoso e reconhecido, e que tudo que precisa é do amor de Mara. Mas o que vemos em tela é um Hafis feliz que — mesmo no final da vida em um documentário — foi finalmente reconhecido. Vai ser visto pelo mundo todo. Já Mara — falecida pouco após as filmagens — não recebeu, de Hafis, seu devido reconhecimento.

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Escreve onde pode e palpita por aí, reúne textos por aqui. E-mail: castrohm@gmail.com — Instagram: henrique.mcastro.

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Henrique Castro

Escreve onde pode e palpita por aí, reúne textos por aqui. E-mail: castrohm@gmail.com — Instagram: henrique.mcastro.