Que possamos entender que Evidências são tão importantes na política como é no karaokê

Henrique Castro
6 min readMay 19, 2019
E nessa loucura de dizer que a terra é plana
Vou negando as vacinas
Escondendo as evidências
Mas pra que viver mentindo
Se eu não posso enganar meu coração
Eu sei que te amo

texto originalmente publicado em: https://www.deviante.com.br/noticias/que-possamos-entender-que-evidencias-sao-tao-importantes-na-politica-como-e-no-karaoke/

“Caros brasileiros, de hoje em diante faremos políticas de acordo com o cidadão de bem e patriota. E como bom cristão abaixaremos os juros — para os ruralistas — e daremos condições para que as pessoas se armem. Dados não importam, portanto reduziremos o Censo a nada, duas ou três perguntas bastam: é brasileiro? É patriota? Tem que mudar isso aí?”

O que teria tudo para ser um livro de utopia é editorial de jornal — os que não são fake news, claro –, é realidade posta.

Desmontando o Censo, não teremos dados para propor políticas públicas pelos próximos 10 anos, não teremos dados para contrapor o que nos for apresentado. Viveremos de aparências e informações “oficiais” — já sinto o reflexo do sol nas alvas paredes cintilantes do Miniver — que associadas ao teto de gastos traça um panorama tenebroso.

Mas tenhamos calma, se analisarmos bem a situação, entenderemos que não iremos vivenciar isso por muito tempo… Com os cortes na cultura e no audiovisual ficaremos restritos à programação oficial financiada por investidores secretos (lembram dos R$15 milhões para o filme da Polícia Federal?). O desmonte das universidades não permitirá pesquisas suficientes para podermos fazer frente ao governo, e, finalmente, com o teto de gastos na saúde pública associado a uma geração sem aposentadoria provavelmente morreremos mais jovens.

Jovens e burros. Mas com a garantia de que mudamos isso aí, talkei?

Balbúrdia e Esbórnia não são países da Escandinávia

Quando estudante de graduação fazia questão de participar e organizar balbúrdias, com um sorriso no rosto, repetia que balbúrdia e esbórnia não eram países escandinavos, mas eram aqui mesmo, onde nossos corações estivessem. Uma mescla de Dorothy e vodka barata.

Mas recentemente tivemos uma polêmica com as balbúrdias e, entre todas possibilidades de assuntos em uma discussão sobre políticas públicas, o moralismo é a que menos deveria importar. Estudantes universitários podem ter (e costumam fazer por merecer) a fama de beberrões e bagunceiros e, para surpresa de ninguém, são estes os responsáveis por grande parte da guerreira — e quase guerrilha — produção científica brasileira. O que não é nada senão eficiência!

Eu fui um dos que me esforcei em merecer o título de organizadores de balbúrdias, juntos de tantos outros e outras, que estavam nas festas e em suas organizações, muitas vezes para conseguir juntar algum dinheiro para fazer uma ação qualquer em um centro acadêmico em defesa da — sempre atacada — universidade pública. Acordávamos de ressaca, mas logo pela manhã esses estudantes estão lá, em salas de aula, bibliotecas, laboratórios, auditórios. Fazem suas pesquisas, produzem conhecimento, desenvolvem regiões dos interiores dos estados brasileiros, movimentam comércio, mercado imobiliário, transportes terrestres e aéreos, rede hoteleira. Tiram seus diplomas, publicam seus artigos, no final das contas, a vodka barata e as festas não passam de uma pequena fração da vida universitária. Caso contrário seríamos um país de uma tranquilidade ímpar, visto que 86% da população não frequenta universidades[1]. A balbúrdia de nosso país não é exclusiva do jovem universitário, quiçá este não é nem o protagonista, contudo o objeto desse texto não é o apontar de dedos para reforçar o velho moralismo conservador, mas refletir sobre como pudemos chegar à toda essa sandice.

Vacinas funcionam e nossas mamadeiras não são de piroca

Passei 15 anos da minha vida dentro das universidades brasileiras, grande parte como estudante e um breve período como estudante e professor. Em ambos lados da sala de aula, foram universidades públicas e particulares. Algumas grandes e de referência internacional, algumas locais. Algumas focadas apenas no ensino de graduação, algumas com grau de excelência em pesquisa. Meu programa de pós-graduação data de 1969, antes da pós-graduação ser regulamentada por lei no país, e em seus 50 anos já teve quase 1.500 dissertações e teses defendidas. São 30 textos anuais pensando na Psicologia da Educação. Parece pouco? Muito? Não sei, mas ainda é insuficiente.

Quando iniciei minha trajetória acadêmica em 2004 muitas eram as questões fundamentais do período, no Brasil e no mundo. Muitas são, ainda hoje, as mesmas, assim como foram no século passado. Mas aparentemente algumas questões haviam sumido do escopo de nossas dúvidas. Apesar de termos a “Revolta da Vacina” em nossa história (e não custa lembrar que essa em nada é um manifesto anticientífico, mas uma revolta popular de caráter social e político), ninguém questionava a validade das vacinas. Questionávamos — e assim devemos continuar — se as existentes eram as mais eficientes, e se eram suficientes. Queríamos mais e melhores vacinas.

Dizer que uma disputa eleitoral não seria baseada em mentiras e manipulação é de uma grande inocência, afinal já vivemos nossos dias Além do Cidadão Kane, então, isso não deveria ser uma novidade. Mas será que oito, doze, vinte anos atrás as pessoas teriam acreditado que as escolas possuíam kits — que incluíam mamadeiras de piroca — para ensinar as crianças a serem gays? Tínhamos medo das invasões internacionais, da destruição de igrejas, da invasão de terras, mas… mamadeiras de piroca?

A terra não é plana e as mulheres de todo o globo não estão à disposição

Apontar incoerências, fazer checagem de dados viraram atividade altamente subversiva. Onde e quando perdemos a preeminência da evidência como balizadora de opiniões, debates, políticas públicas, se é que algum dia de fato a tivemos? Talvez tenham sido os memes, as piadas? Achávamos bonitinho e engraçado as pessoas acharem que a terra era plana. Ríamos de suas declarações, escrachávamos seus escritos. Em algum momento foi coolser terraplanista de brincadeira. “É inofensivo, não fazem mal a ninguém”, “pelo menos não são os malucos antivacinas… esses sim são perigosos”. De fato, ser antivacina é um problema de saúde pública a curto prazo. Hoje vemos navios em quarentena, aviões que pousam e não podem desembarcar, doenças que imaginávamos terem ficado nas estatísticas da história, voltam a ser estatísticas médicas. “Mas deixe os planilsonsna deles, é legal rir deles”.

Achávamos legal rir de certos políticos caricatos na televisão, achávamos divertido um empresário com um bronzeado questionável ser candidato à presidência de uma certa república. Era engraçado porque tínhamos a certeza de que ninguém acreditaria nas coisas sem cabimento que estes diziam. Mas se a evidência da esfericidade do globo estava em suspensão, se era legítimo duvidar disso, era legítimo duvidar de tantas outras coisas.

“Estamos cansados de vocês nos enganarem por tanto tempo, vamos mostrar a verdade” e, assim, venceram eleições.

Hoje, de acordo com suas opiniões — já que evidências não significam muito — as mulheres estão à disposição para turistas, e o aquecimento global é uma farsa e cancelar eventos para discutir esse tema trará economia para o país (tá, com essa pode rir).

País com futuro é país sem aposentadoria e sem universidade

Por ora o obscurantismo vence. Mas é importante entender o cinismo disso tudo. Não podemos ter a ingenuidade de achar que são “burros” e “ignorantes” os que conduzem esses processos e que podemos ser iluministas levando-os à razão com bons argumentos. O desmonte da universidade é apresentado quase como uma Cruzada, uma reconquista, mas por baixo da cruz e da espada estão imensos montantes de dinheiro interessados em abocanhar a universidade pública e sua histórica construção — de edificações e de produções científicas, artísticas, sociais — para seus grupos de investimentos. As ações desses grupos todas subiram nessas últimas semanas, mas enquanto isso somos nublados por um ministro errando (?) números oficiais, enquanto faz qualquer pantomima com bolachas.

“Não é corte, é contingenciamento”, “podemos rever se a reforma [da previdência] passar”. Ou em boa tradução, é chantagem.

Já não dá mais para rir de memes, não há muito tempo para risos. Dizer que vivemos tempos obscuros é fácil. Difícil é viver nele.

Em minha atual série de postagens aqui no Portal Deviante, escrevo sobre como o medo pode ser usado como instrumento de controle social. Ainda não concluí, mas — ainda — lerão que acalmávamos nossos medos com mitos. Em tempos, passamos a retirar os mitos, na medida em que desenvolvíamos ciência. Hoje vemos mitos retirando a ciência para colocar medo.

Precisamos virar esse jogo imediatamente. O Portal Deviante, e tantas outras iniciativas de divulgação científica estão aqui diariamente garantindo insumos para nosso contra-ataque. O brasileiro já ama Evidências. Grita e clama por ela a plenos pulmões em todos churrascos, festas, esquentas, cervejadas, balbúrdias e karaokês. Precisamos dar um passo além e garantir evidências em todos espaços de nossos cotidianos:

Leis de trânsito? Baseadas em evidências.

Saúde pública e tratamentos de saúde? Baseados em evidências.

Segurança pública e porte de armas? Baseadas em evidências.

Previdência social? Baseadas em evidências.

Ciência e universidade… Adivinha só: Baseadas em evidências!

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Henrique Castro

Escreve onde pode e palpita por aí, reúne textos por aqui. E-mail: castrohm@gmail.com — Instagram: henrique.mcastro.